terça-feira, 19 de junho de 2018

Era uma vez...


Once upon a time...
Uma velha cidade amurada era a anos assolada por uma praga misteriosa. A natureza da praga era desconhecida, mas sabia-se que carregava sintomas de lepra, com necrose e perda de membros, no entanto, as feridas ficam purulentas, cobertas por um tecido mole e corrimentos de viscos.
Josias era apenas mais uma vítima dessa maldição, com a perda da orelha esquerda e com as erupções no rosto, não conseguia mais emprego, e fora a muito expulso de casa. Os dias nas ruas eram indiferentes, por isso não os contava mais.
Naquela manhã, Josias roubara um pouco de feno, enlouquecido pela fome, mas logo percebera seu erro, por isso usou-o para forrar o chão. O sol havia sido cruel durante a tarde, mas ficar deitado reduzia as dores da doença e o feno oferecia um mínimo de conforto, apesar de tudo.


By: Thesla
Somente quando a lua era alta pode observar seus arredores, e viu-se num beco de muros de pedra, deserto. Somente a parede em que recostava exibia qualquer traço de vida, uma cerca viva de videiras grossas e bastante verdes. Aquela visão oferecia um pouco de paz a sua alma atormentada. Adormeceu.
Era ainda madruga quando sentiu o corpo preso, apertado num abraço fio e ressecado. Abriu os olhos e se viu amarrado, as videiras o cercavam e arrastavam para dentro do muro, como uma boca faminta. Tentou gritar, mas a garganta ressecada não permitiu, então arregalou os olhos, com a maior expressão de medo que pode produzir.
Num piscar de olhos, a rua havia sumido, e estava livre novamente, mas livre aonde? Ficou de pé tateando a escuridão. Paredes de pedra e um chão liso sob os pés descalços. De repente, um degrau. Foi então que tochas começaram a acender, iluminando o caminho.
Josias estava agora dentro de uma escadaria que descia sinuosamente. Não havia entrada, por isso, seria obrigado a seguir os degraus até onde eles o levassem.
Desceu o último degrau e se deparou com uma sala estranha. Parecia um salão circular, como uma grande sala de jantar de castelo, mas não havia móveis. Tampouco havia tochas, mas o local era muito bem iluminado com um brilho alaranjado que parecia vir de baixo do chão de cristal. O teto era de cerâmica e carregava uma pintura de dois bravos cavaleiros em um combate mortal.
Só depois de muito tempo observou a figura estranha que o encarava com olhos raivosos.
-Quem é você e o que faz aqui? – perguntou a mulher com o rosto coberto por um véu.
-Sou apenas um pedinte, estava dormindo na rua quando vim parar aqui. – Respondeu Josias, ainda confuso com o que acontecera.
Ele observava a moça, e logo percebeu pelas vestes que se tratava de uma bruxa. Ela carrega um conjunto de frascos e poções amarradas na cintura, juntamente com um saco que parecia ser de ervas, seus pés e cabelos pareciam sujos de terra, sua roupa rasgada tinha folhas enroscadas no tecido e nos dedos, carregava anéis de gemas presas por raízes trançadas.
- E o que quer comigo? Vociferou a mulher.
-Me desculpe, não quero nada, estou apenas perdido. - Disse o homem apavorado. Embora ele não soubesse, a bruxa estava tão irritada porque estava presa há séculos e pensava que ele pudesse ter vindo atormentá-la.
-Então talvez possamos nos ajudar, não há saída deste inferno, a menos que você possa ler essas palavras- disse ela apontando para o único objeto na sala, um livro a seus pés.
Josias havia sido bibliotecário real antes da praga, por isso, era muito bem letrado, ao contrário da pobre mulher, que mal conhecia as letras. O homem pegou o livro e logo começou a pronunciar aquelas balburdias de outro idioma. Prontamente um corredor se abriu, com uma nova escada descendente. A bruxa respirou fundo e imediatamente desapareceu.
Josias estava novamente sozinho, então decidiu seguir o caminho que surgira diante dele. Dessa vez, as paredes não eram tijolos de pedra, eram estalactites de uma caverna, e as tochas estavam mais distantes dificultando enxergar o caminho.
Quando chegou ao fundo encontrou novamente a mulher, mas dessa vez ela carregava uma grande lanterna a óleo.
- Para sair daqui, você terá que passar por aquela porta,- disse ela apontando para a direita, onde havia uma velha porta de madeira apodrecida- mas se o fizer, - ela ergue a lanterna- acordará esta criatura.- e a luz difusa revelou um grande bloco de gelo, com um fóssil reptiliano preso bem no meio.


by: Thesla
Nem a criatura nem o sorriso de canto da bruxa importavam para Josias, a doença já o corroía, aquilo não poderia assustá-lo. Correu e atravessou desesperadamente a porta, caindo de joelhos na mesma rua que adormecera.
Mesmo com o esfolado, o homem correu desesperadamente pela rua, agora que o medo o atingira. Josias gritava sobre um monstro, mas gritaria era comum para os doentes, por isso ninguém dava atenção.
Em pânico, Josias abordou dois guardas, tentando informar sobre o que vira, mas eles se entreolharam desconfiados, prontos para espantar mais um “maluco”. No entanto, antes de estenderem as alabardas, olharam para os céus.
Era início da manhã, o sol havia aparecido a pouco, mas começava a escurecer. Grandes nuvens formavam uma espiral de olho negro sobre a cidade, bem no meio da temporada de estiagem. Logo se ouviu um grande estrondo e, na praça central, os lajedos de pedra talhada começaram a erguer-se, como se uma erupção fosse romper bem no centro da cidade.
Ouvindo o barulho, os guardas abandonaram o doente e correram para averiguar a situação.
Lama e barro emergiam rapidamente num monte fétido por entre os lajedos cinzentos, e de repente, uma criatura cadavérica serpenteou para fora da podridão, ressonando num barulho gutural extremamente ameaçador. Como se por um feitiço, todos os doentes pararam, hipnotizados pela sinistra melodia.
Mathias, o guarda veterano, olhou no fundo os olhos de seu parceiro, e pousando a mão no ombro do companheiro, deu o sinal para que atacassem a criatura, mas enquanto apontavam suas alabardas, sentiram o toque viscoso de dezenas de doentes, correndo por cima deles, tentando alcançar de qualquer maneira aquele réptil fossilizado.
Os guardas acabaram mortos, atropelados pela massa de carne pútrida que se agarrava nos ossos expostos da criatura, se contorcendo e deformando, aos poucos preenchendo o que faltava naquele animal.
A criatura nem era tão grande assim, cinco metros de comprimento, mas parecia nunca se completar. Quando quase todos os contaminados das ruas foram absorvidos, ela começou a violentamente invadir as casas, propagando gritos e pânico.
Nesse momento, emergia, da mesma pústula de lama e podridão que a criatura surgiu, uma figura feminina, a bruxa que outrora estava presa com Josias, sorrindo e cantarolando.
Quando Josias passou por ela, prestes a abraçar o corpo do monstro, ela o interrompeu, com um sonoro beijo na bochecha purulenta, em um agradecimento impiedoso.
Mais guardas fecharam a passagem na rua principal, mas a essa altura, mais da metade da cidade já havia se perdido. A criatura se ergueu às costas da moça, e rugiu com seu hálito insalubre, enquanto a bruxa tirava de sua sacola penas ensanguentadas.
Cada pena que ela lançava ao vento se transformava em um pequeno bando de corvos famintos. Os corvos atacaram os guardas, quebrando sua devesa, e então a massa de vísceras reptiliana atacou, assassinando a todos.
Mas a violência não parou, a bruxa continuou a atirar penas, até que uma grande nuvem de pássaros negros estivesse sobre a cidade, alimentando-se de todos que ali estavam. Então, era hora de marchar sobre o castelo.
Invadindo a muralha interna, sob um sinal de mão da mulher, a Serpente pútrida se ergueu novamente, abrindo o próprio rosto ao meio, dividindo-se em duas criaturas.
O palácio caiu rapidamente, com os corvos dilacerando a corte. Não havia necessidade de discurso, não havia necessidade de antagonizar o rei, aquela vingança era impessoal, direta, e a bruxa não perderia tempo com monólogos de vitória. Ela então subiu a escada da torre mais alta, saindo diretamente para um jardim de terraço.
Daquele jardim verde, ela observou sua obra. Enquanto os pássaros imundos decoravam o horizonte, a bruxa sorriu feliz, pois sua profecia de vingança havia se cumprido. Ela então abandonou aquele maldito lugar e foi para casa... ... em paz.

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